Embora o clichê aponte que a intuição seja um atributo muito mais feminino do que masculino, a minha sempre me avisava que eu seria pai de menina. Tinha meus nomes de (grandes) mulheres preferidos e não fazia a menor ideia sobre como chamaria meu filho, caso o novo integrante da família fosse um garoto. A intuição estava correta.
Minha anunciação se cumpriu como a de Alceu Valença: em uma manhã de domingo Helena deu as caras para o mundo. Tive o privilégio de acompanhar todo o trabalho de parto, ouvir seu primeiro choro e ver sua mamada inaugural. Tudo muito diferente de como havia aprendido pelas novelas, pelos filmes da sessão da tarde e, principalmente, pelas lendas que cercam o homem que assiste ao parto da mulher. Mas a minha percepção sobre o perigo dos clichês havia começado antes mesmo do nascimento de minha filha.
Frequentemente, clichês são um sinal de falta de criatividade ou preguiça, e foi essa minha constatação quando começamos a montar o enxoval. Não tenho nada contra a cor rosa. Só que me incomodava o fato de qualquer roupa ou acessório que fosse comprar para minha filha precisasse, necessariamente, ter esse tom. Experimente olhar para a seção das meninas e verá que em algumas lojas o panorama é quase monocromático. Como nunca duvidei de que a Mônica e a Magali fossem meninas apesar de usarem vermelho e amarelo, acho estranha essa obsessão com o rosa.
Mais do que falta de imaginação, os clichês podem ter outros significados. Não retratam apenas a mesmice dos fabricantes de roupas e acessórios. Eles também denotam preconceitos e estampam o despreparo da sociedade para criar suas mulheres.
“Agora você deixou de ser consumidor para virar fornecedor”. Perdi as contas de quantas vezes ouvi essa frase desde que minha filha nasceu, inclusive saindo da boca de outras mulheres. Será que em vez de uma criança como qualquer outra, seria eu pai de uma peça de picanha? O choro que não me deixa dormir não é de um bebê, mas de um celular última versão? Fornecedor de quê, afinal?
A sexualidade da minha filha, como manda o clichê, deverá ser objeto de consumo de um homem, mesmo que a vida apresente outras possibilidades. Minha filha nem começou a andar e a sexualidade dela já é uma preocupação? Se gostam tanto de antecipar as coisas, planejem, por exemplo, se vocês serão enterrados ou cremados.
“O menino a gente solta, a menina a gente prende”. Em vez de pai, virei carcereiro? Esse clichê não só é nocivo para as meninas como também para os meninos que crescem sob a responsabilidade de serem predadores. Na melhor das hipóteses, se tornarão homens que não sabem lidar com seus sentimentos, inseguros e ignorantes do que realmente encanta uma mulher.
Além do machismo, nesse chavão há uma forte dose de bestialização, como se o relacionamento entre homens e mulheres fosse uma cadeia alimentar. E essa é a realidade, pois nem todos os homens tiveram a sorte que eu tive de ter um pai que não levou seus filhos adolescentes ao puteiro da mesma forma que se leva uma criança à sorveteria para escolher seu sabor favorito. Quer clichê maior que esse?
“Que princesa”. Ok, obrigado. Sei que a intenção é elogiar. Mas a qual tipo de princesa você se refere? Aquelas meninas intocáveis, que esperam em sua redoma o nobre príncipe engomadinho para salvá-las? Prefiro que minha filha seja uma escudeira viking, uma guerreira troiana. Uma Dandara ou uma Mérida. Aliás, até as princesas da Disney há algum tempo fogem dos clichês da garota prisioneira dos padrões sociais. Muitas passaram a resgatar, por exemplo, as origens dos contos de Andersen nos quais várias das personagens eram corajosas, independentes e lutavam por seus objetivos.
Agora, veja só: um pai determinando o que sua filha vai ser ou como deve se comportar também é um baita clichê. Pensando bem, se ela quiser ser uma princesa, que siga seu caminho. Meu papel é apresentar as possibilidades. O dela é de fazer as escolhas.
Esses exemplos são apenas algumas das variedades de bobagens que um pai de menina consegue ouvir antes mesmo de sua filha completar o primeiro ano. Hoje, enquanto ela caminha para o segundo ano de vida, quando saio sozinho com ela ainda ouço “onde está a mãe?”, como se um pai não tivesse capacidade para cuidar de sua própria filha ou a mãe não pudesse ter outras atividades além de cuidar da criança.
Ao longo de seu crescimento, sei que outros clichês aparecerão em seu caminho em muito mais quantidade e cada vez mais violentos: “lugar de mulher é na cozinha”, “mulher não sabe dirigir”, “mulher não entende de futebol”, “feminista é mal comida” e tantos outros que muitas vezes eu mesmo já repeti.
Não é fácil desviar dos clichês. Mas é muito mais difícil viver sob a regência deles.